
Eram cerca das 04H00. Estava eu de "gratificado" ao edifício do Banco de Portugal, mais precisamente nas suas traseiras. Os contentores do lixo ali existentes serviam de depósito aos desperdícios de um dos restaurante mais famosos da cidade. Mesmo junto à Câmara Municipal.
De repente, ouvi um barulho estranho. Pareceu-me proveniente do interior do banco. A adrenalina percorreu-me todo o corpo. Seria um assalto? Nem tempo tive para pensar. Empunhei a pistola de serviço e dirigi-me pé ante pé para a porta de entrada do banco. Ouvi um choro de criança. Dirigi-me para o local de onde provinha, mesmo por detrás dos recipientes do lixo. A noite estava escura como o breu. A iluminação era deficiente. Mesmo assim descortinei a criança. Chamei-a para junto de mim. Não só não respondeu ao meu apelo como ainda se tentou esconder. Fui ao seu encontro e o que encontrei deixou-me estarrecido. Junto a ela encontrava-se uma rapariga já adolescente com uma outra criança ao colo. Soube então que eram ambos seus filhos e que um terceiro tinha ficado em casa da avó. Havia uma diferença de um ano entre eles. "Vasculhar" os depósitos de lixo era rotina diária. Fazia-o durante a noite por sentir vergonha e com medo de ser censurada pela sociedade. Estava separada do pai dos seus filhos e encontrava-se desempregada há cerca de três meses. Até então trabalhava numa fábrica de conservas de peixe que havia entrado num processo de falência, lançando para o desemprego mais de cinquenta pessoas. O regime de atribuição de subsídio de desemprego, naquela altura, regia-se por outras regras que não as de hoje. A assistência social era pouco significativa ou praticamente inexistente. Uma das funções da Polícia de Segurança Pública era precisamente suprir a falta de assistência social e promover o encaminhamento destas pessoas para locais de acolhimento. Solicitei a minha rendição no serviço e acompanhei a mãe e as crianças até à sede do Comando. Foram duzentos metros percorridos com choros e lamentos. Com o assentimento do subchefe de serviço, encaminhei mãe e filhas para a messe do Comando. Virei cozinheiro e preparei-lhes uma refeição que lhes aconchegasse o estômago. O choro deu lugar a sorrisos. Os olhos das crianças brilhavam de alegria. Pareciam estrelas cintilantes. Regressaram a casa. No entanto, a situação foi relatada por escrito e encaminhada para a entidade competente. Nunca mais os vi na mesma situação em que os havia encontrado.
Passaram quase trinta anos. A pobreza continua a ser vista como uma paisagem das ruas das cidades ou, como elemento de conformação de um cenário baseado por jogos de interesses com fins meramente económicos. Por vezes, do outro lado do campo, encontram-se histórias plenas de vida.
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